quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Testemunhos do Cotidiano

Inaugurando um novo tipo de publicação no blog, estamos compartilhando um texto que chegou às nossas mãos. Continuando com a discussão sobre testemunhar, achamos muito potente ter um espaço no blog para que esses testemunhos do cotidiano possam ter lugar.


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FUGA DE SENTIDO

Típica manhã de terça-feira no abrigo residencial “sabiá”: os burocratas
resmungavam, a equipe “técnica” saboreava seu café barato enquanto atuava uma
sinfonia de queixas, os sabiás – do lado de fora do espaço reservado aos adultos –
desferiam palavrões com uma criatividade neologística digna de Guimarães Rosa. Em
resumo, o teatro da assistência seguia a pleno vapor!

Integrado, o estagiário assistia (a)a peça. Sentado em sua cadeira, realizando
alguma tarefa qualquer, é interrompido subitamente por uma fala cotidiana – banal por
sua repetição, mas que por algum motivo provocou um forte estranhamento naquele
momento: “Joãozinho fugiu de novo”, proferiu o autodenominado professor, membro
da já adjetivada equipe.

O estagiário então assume a palavra e oferta uma interrogativa como
réplica: “isto é uma prisão que eles precisam fugir?”. Seu interlocutor é surpreendido,
e um tórrido diálogo toma conta do espaço, estragando a cena, surpreendendo os
atores. O estagiário justifica sua pergunta: “como podemos esperar dessas crianças uma
apropriação outra desse espaço, diferente da de uma prisão, de uma gaiola, enquanto
operamos em uma lógica de fugas e busca/apreensão?”. O contra-argumento já era
esperado; o professor justifica sua fala em seus trinta anos de experiência e encerra a
discussão.

Três semanas depois, durante uma reunião de equipe, o mesmo estagiário
surpreende-se novamente com o experiente professor: quando Joãozinho surge como
uma das pautas, nosso sapiente profissional defende uma postura completamente outra
daquela sustentada no passado; para ele, Joãozinho não mais “fugiu”, e sim “evadiu” e
deveríamos tentar preservar aquilo que deixou para trás enquanto marca no seu antigo
espaço – no caso alguns poucos pertences-, apostando que ele voltará.

SOBRE A INTERVENÇÃO CLÍNICA

Parafraseando um autor que tenho em alta conta: “O mestre (zen) interrompe o
silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé”. Na mesma medida em que não
podemos prever o efeito de uma intervenção, nem ao menos atribuir uma causalidade a
este, podemos situar ou até mesmo caracterizar esta como todo ato que visa inserir uma
dimensão de dúvida em um plano de certezas. Para tal ato, um pontapé pode exercer o
mesmo valor que uma frase sarcástica, uma pergunta bem formulada, ou até mesmo o
ridículo de uma piada.

Inserir uma pergunta é devolver um conjunto de possibilidades, uma abertura
a sentidos outros para além daquele que, em um primeiro momento, se encontra
fechado de maneira unívoca. Intervir de maneira clínica, sobre essa perspectiva,
é apostar na potência de introduzir e suspender uma pergunta em detrimento de
oferecer uma resposta. Para os mais pedantes, seria o equivalente ao tão batido clichê
psicanalítico: “devolver uma dimensão de significante lá onde somente o signo se faz
presente”.

Uma intervenção nesse plano, sob esse olhar, se faz fundamental no trabalho
com crianças: nesse período de busca de significantes que o representem, o signo
oferecido por aqueles que se colocam em uma posição desejante frente a esse atua
como uma profecia que se auto-cumpre; é aquela velha história: uma mãe chega
ao consultório reclamando que o filho é vagabundo, imprestável, inútil e que era
assim desde bebê. Afinal, como se perguntar: qual o desejo enfim que engendrou
subjetivamente essa criança e se expressa na queixa dessa mãe?

O mesmo talvez aconteça no breve recorte que trago para o debate: até que
ponto, ao reclamar que Joãozinho “fugiu” do abrigo, esse verbo fugir não determina
uma posição, uma maneira de apropriar-se do espaço e um desejo de “fuga” por parte
dos cuidadores? Se algo existiu de clínico nessa intervenção, ela atuou no plano da
pergunta, devolvendo uma polissemia ao verbo.

Cabe ressaltar mais um detalhe: uma intervenção clínica não pode ser
premeditada. Ela é um acontecimento, situado em determinado tempo, em uma
determinada conjuntura. Mas isso talvez seja assunto para outro escrito.

Carlos Adriano Sippert

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